quinta-feira, 8 de outubro de 2009

DA MENTE DE CRISTO À MODERNIDADE

Em toda a sua história, o Cristianismo sempre soube, bem ou mal, reconhecer, enfrentar e combater seus inimigos. Fossem ele teólogos, com suas heresias e desvios doutrinários; impérios, com seus reis e exércitos; ou mesmo demônios, com seus ataques sutis e enganosos, os cristãos sempre souberam discerni-los e reagir de forma a preservar a vocação da Igreja e sua aliança com o Criador. Discerni-los não era tarefa muito difícil, à exceção de algumas heresias que trouxeram, por certo tempo, confusão e divisão. Mas, mesmo sendo ameaçado com torturas e perseguições, todos os inimigos do Cristianismo foram enfrentados com coragem e fé, e contribuíram direta e indiretamente para o crescimento e fortalecimento da Igreja de Cristo, tanto na sua fé como na sua vocação.

Em nossa história mais recente vemos que o conflito deu-se basicamente no campo da fogmática. O liberalismo teológico do início do século foi, e continua sendo, o grande vilão que ameaça a integridade da fé evangélica, levantando dúvidas quanto às doutrinas básicas do cristianismo. A reação a esse "inimigo" foi o movimento fundamentalista que, a princípio, buscou resgatar e preservar os princípios fundamentais da fé cristã, mas que acabou sendo absorvido por outros valores teológicos e ideológicos, transformando-se ele mesmo numa outra ameaça. Atualmente, vivemos a redescoberta da "guerra espiritual", que atuam no mundo espiritual, cujo combate também se dá com as armas do Espírito. Essa guerra de natureza mais metafísica tem dominado quase todo o cenário dos conflitos da igreja evangélica nos últimos anos.

No entanto, hoje a Igreja se vê diante de uma nova realidade, que a ameaça e traz uma característica muito peculiar e incomum: não se trata de um inimigo. Pelo menos não no sentido em que os outros mostraram-se na história. A bem da verdade, trata-se mais de um aliado que oferece inúmeros recursos considerados imprescindíveis para o avanço do evangelho do que uma ameaça à fé e missão da igreja. Mas é exatamente aqui que mora o perigo. Ao mostrar-se como um aliado inofensivo, aceito e admirado por todos, que cria uma atmosfera de possibilidades e realizações, tira da Igreja a capacidade de discernir o que realmente está acontecendo à sua volta. E, sem que ela perceba, vai devagar minando suas bases até comprometer sua identidade.

Estamos falando da modernidade. Obviamente, não se trata de nenhum inimigo ideológico nem teológico, nem mesmo de um inimigo. É apenas a realidade constatada no chamado mundo civilizado. Ela está aí, admirada por todos, contribuindo com o que de melhor o homem pode experimentar. Mas paradoxalmente, ela traz também a maior ameaça e maior desafio que o cristianismo jamais experimentou. Refletir sobre a modernidade e seus desdobramentos sobre a fé e a missão da igreja é a grande tarefa que temos pela frente.

A ameaça que a modernidade traz não se encontra no campo da teologia dogmática, das formulações doutrinárias nem das confissões de fé da Igreja. Nada disso se encontra ameaçado de deformação ou extinção. Nem mesmo se trata de uma ameaça maligna, de um ataque satânico que poderia ser exorcizado mediante a "oração de guerra", livrando a Igreja de uma crise sem precedentes. Também não se trata de nenhuma conspiração idealizada por estruturas políticas contrárias aos valores do reino de Deus. Trata-se mais de uma ameaça à natureza própria da Igreja, ao significado de ser Igreja. Na verdade, o desafio que temos pela frente em relação à modernidade não é o de lutar pelas doutrinas evangélicas nem pela moral religiosa (embora continuem sendo temas importantes), mas o de preservar o propósito original da aliança de Deus com o seu povo, de conseguir simplesmente ser Igreja.

Quando olhamos para a realidade protestante da Europa pós-moderna, continente que foi o berço do protestantismo, percebemos a força devastadora da modernidade sobre a fé e a igreja. Aquilo que imperadores com seus exércitos ou mesmo homens com suas heresias não conseguiram ao longo destes quase dois mil anos de cristianismo, a modernidade conseguiu sem grandes esforços. Para nós, brasileiros, que experimentamos um momento de grande entusiasmo e crescimento evangélico, pode parecer pura especulação de mau gosto tratar deste tema como uma ameaça a uma igreja que nunca esteve tão sólida e segura da sua vocação. Talvez valesse a pena lembrar aqui as palavras do Senhor à igreja de Laodicéia"Pois dizes: Estou rico e abastado,e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tú és infeliz, sim, miserável, pobre,cego e nu".

A modernidade cega, empobrece e descaracteriza a Igreja.

Infelizmente, poucos têm se preocupado com este tema. Talvez, por se encontrar tão próximo de nós, o assunto esteja, ao mesmo tempo, mais distante do que nunca. Fazemos parte dele, somos beneficiados por ele e, sem que percebamos, somos conduzidos por ele. Nossos valores, cultura e religião são sutilmente influenciados e transformados pela modernidade, e absorvemos tudo isso sem nenhuma resistência. Somos hoje uma igreja moderna, não porque incluímos instrumentos modernos na nossa liturgia, mas porque incorporamos valores próprios de uma sociedade moderna. A secularização, o individualismo, a pluralização são algumas dessas novas realidades que têm mudado o cenário das relações humanas e religiosas.

Modernidade é o tema do livro. Sua abordagem é profética, feita por alguém que tem estado preocupado com este assunto já há algum tempo. É profética porque contêm os três elementos que considero indispensável numa profecia. Primeiro, compromisso com o passado, com os oráculos de Deus, com o propósito da aliança. Toda a profecia mantém sempre um pé no passado como referencial bíblico e histórico do chamado e vocação da Igreja.

Segundo, analisa, à luz do passado, os oráculos de Deus e de sua Palavra, o presente, procurando discernir a modernidade não por ela nem a partir dela, mas pela aliança de Deus com sua Igreja. Esta é, particularmente, uma tarefa difícil, principalmente em se tratando de uma igreja como a brasileira, que vive momentos de crescimento e euforia. Não estamos acostumados a lidar com o óbvio; a habilidade para discernir o presente e seus desdobramentos sobre o futuro exige uma visão mais acurada da realidade, visão esta que nos é dada como um dom do espírito Santo, que sempre nos pergunta: "O que vês ?". Terceiro, o profetismo bíblico aponta para os desdobramentos da modernidade sobre a Igreja e sua missão, caso esta não atente para os riscos inerentes a este processo.

A cultura moderna é o molde com o qual todos estamos fomos moldados e que somente podemos reconhecer, rejeitar e mudar por meio da perspectiva exterior de Deus em meio à nossa ignorância, uma ignorância agudizada, de certa forma, pelo excesso de informação". A dificuldade encontrada para discernir o mundo moderno é porque nós somos modernos. É preciso se posicionar como um observador crítico que analisa o processo de modernização de uma cultura e seus efeitos sobre a fé cristã. Esta análise é, ao mesmo tempo, sociológica e teológica. O sábio afirma que "não havendo profecia o povo se corrompe" (Pv. 29:18). Que o Senhor possa nos ajudar a discernir os sinais do mundo em que vivemos e servimos. Que Ele abra os nossos olhos para que vejamos aquilo que nem sempre é tão óbvio, e que nos prepare para o enfrentamento desta realidade que não pode ser definida como um "inimigo", mas que ameaça o futuro da Igreja.

(Copiado do livro: Icabode)

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